No terceiro encontro de nossos confrades, várias safras de um único: Vega-Sicilia, o mito
Menos idólatra e mais inoclasta, não sou um tipo que adora incondicionalmente gênios. "Estou farto de semideuses", disse o poeta Pessoa, e num outro verso ainda completou: "O gênio é uma grande besteira".
Também em relação aos vinhos aplico essa postura. Não me ajoelho diante de uma garrafa de Romanée Conti se o vinho não estiver realmente sublime. Há alguns anos, trabalhando como sommelier, costuma dizer aos meus clientes que não havia diferença qualitativa entre o Clos Mogador, tinto proveniente da região do Priorato (Espanha), do qual eu não me recordo muito bem a safra, e o Château Petrus da safra de 87, dois vinhos contidos na carta. Agora, se não havia a qualitativa, por que então o Bordeaux de 87 poderia custar oito vezes o que custava o excepicional espanhol? Simplesmente porque o Petrus tornou-se um mito.
Um dos maiores mitos do mundo do vinho é o Vega-Sicilia, o mais nobre e famigerado vnho espanhol, produzido na Ribera del Duero, e elaborado majoritariamente com a uva tinto fino, ou tempranillo, com a uva tinto fino, ou tempranillo, com uma pequena porção da cabernet sauvignon e ainda menor da merlot e da malbec.
Para muitos é indiscutível a excelência do Vega, mas para quem "não quer comprar ansiosamente os velhos trajes do imperador", há sim que prová-los às cegas e compará-lo com seus semelhantes, e ainda com outros, sobretudo porque é um dos poucos imperadores remanescentes do velho estilo espanhol.
Foi assim que um amigo, muito atento às percepções efetivas dos vinhos, colocou-me há alguns anos a seguinte questão que para muitos pode parecer absurda: "Você gosta do Vega-Sicilia?". É claro que perguntava do Vega em relação aos grandes vinhos. A partir de então passei a advogado do diabo do Vega, a provar mais atentamente, e a fechar, literária e literalmente, os olhos quando provava-o (Ah! Fecho os olhos para te ver), principalmente depois de me lembrar de uma degustação, há alguns anos, em que várias garrafas das décadas de 60, 70, e 80 estavam decepcionantes.
Por um outro lado, algumas outras, também antigas, que provei em várias ocasiões se tornaram memoráveis aos meus sentidos. O Vega-Sicilia "único" não é único só no nome. É um vinho desigual, com características tão peculiares que seria fácil reconhecê-lo em meio a tantos outros, mesmo numa prova às cegas. Só é produzido nos anos excepcionais e lançado no mercado depois de muitos anos de envelhecimento nas adegas da "bodega".
Mas agora estávamos reunidos mais uma vez para a nobre degustação da diVino. Tema? Vega-Sicilia, uma vertical. Eram oito safras de diversas décadas e, dessa vez, ele, o venerado Vega, me convenceu: é definitivamente, um vinho extraordinário! Todas as garrafas, majestosas - e assim foi. O 86 tinha aroma borgonhesamente frutado com intensidade não muito convincnte, mas, aos poucos, abria seu leque de pavão: surgiam os aromas de evolução como os de especiarias e o de "sous-bois", que quer dizer matéria orgânica ou húmus. Na boca era delicado, aerado, bem seco, porém sedoso.
O 95 tinha bela intensidade olfativa, lembrava coisas como chocolate, trufas pretas e sorvete de frutas vermelhas. Menos encorpado que o anterior, porém com muita força e frescor. Toques de caramelo, tostados, e um pouco tânico. Delicioso, fácil...
Os aromas do safra 90 também trazia lembranças aromáticas da bourgogne (muitos vinhos elaborados com a uva tempranillo se assemelham com os da pinot noir), cheio de frutas e com pitada de húmus.
Na boca tem grande concentração, é excepcional, mas ainda um pouco contido, precisando de mais alguns anos para se abrir.
O 70 é um senhor rejuvenescido, um vinho histórico que pode durar ainda mais 30 anos, cheirando a pitanga, geléia de morango e certa especiaria. No sabor, é compacto, firme, nervoso, com grande persistência, com seu gostinho achocolatado e sua eterna juventude.
O 89 é curiosamente bordalês, muito complexo com frutas secas, tabaco, madeira "fina", madeira velha, uma pitada de estábulo. Robusto, longo, e com um lindo e jovial frutado no "fim de boca".
O mais intrigante, por ser o principal pretendente a vir a ser o melhor, era o 94, e estava considravelmente fechado quando servido, se mostrando muito duro na boca. Depois, com aeração no copo, se mostra com couro, especiarias, terra, frutas pretas e chocolate. Acidez fina, tem a estrutura de um Petrus de grande safra. Hoje tânico, amanhã titânico.
Então vieram os mais velhos.
O 60 tinha intenso aroma animal, muito mel, couro e especiarias cobertos por um tom rançoso como o de um velho vinho do porto. Acidez vibrante, delicadamente potente, ainda que um pouco diluído que o 62. Esse, o vinho da noite, levando-se em conta que está no seu apogeu, ao contrário da maioria. Lembranças de um velho vinho doce no nariz, um pouco Porto, um pouco Banyuls, com sua fruta seca, seu chocolate, seu ranço, seu mel, ou, mais precisamente, o macaron de mel que como em frente de casa, na fabulosa doceria da Mara Melo.
Seco, mas esplendidamente untuoso. Complexidade e profundidade de um... esse sim! Mito que felizmente se torna corpórea na boca do homem.
E assim, depois de tanto perseguir o cálice sagrado da verdade, me rendo à realeza (sempre imparcial e com sentidos atentos a agum revés) e percebo que, depois de beber alguns goles dessa pérola, vem uma espécie de deslumbramento e, meio à deriva, não sou eu quem me navega, quem navega é o Vega.
AS SAFRAS do VEGA-SICILIA
safra 1960 - safra 1970 - safra 1989 - safra 1994
safra 1962 - safra 1986 - safra 1990 - safra 1995
Texto escrito por Manoel Beato (retirado da revista DiVino edição 03 ano I)
O que acharam desse texto, eu gostei muito comentem a opinião de vocês é muito importante para eu saber o tipo de texto a colocar no blog.
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